Anoitan

“Se sempre há um amanhã, sempre há um anoitã.”

“Anticristo” (em nosso tempo) de Lars Von Trier

Posted by adi em novembro 6, 2009

Comecei a Assistir “Anticristo” achando que seria mais um daqueles filmes de terror ao estilo de “O Exorcista”, “A Profecia”, “O Exorcismo de Emily Rose”, etc, mas não; não se trata desse tipo de terror, mas de um terror totalmente psicológico, interior, trata da dor nua, crua, desesperada, da culpa, auto-punição e dos medos mais profundos do ser humano.

imagesÉ um filme polêmico, chocante, simbólico, onde pode ser interpretado de diversas maneiras, mas não no primeiro momento, não logo depois de acabar o filme, porque nesse momento fica a sensação de: “Nossa!! Acabou assim, sem pé nem cabeça”, “não tem lógica, nem significado”,  ao mesmo tempo que,  quando se está assistindo  não se  desgruda o olho da tela, e depois que acaba o filme, mesmo com essa sensação de filme estranho, não paramos de pensar sobre ele, pois certamente as imagens fortes causam algum impacto dentro da própria psique, e nos traz muitos questionamentos.

Particularmente eu gostei muito do filme, porque mostra aspectos da natureza humana que ninguém gosta de admitir, o lado sombrio que está bem escondido dentro do ser, mas que ninguém em sã consciência quer mexer… mas como disse Jung, “Tudo aquilo que não enfrentamos em vida acaba se tornando nosso destino”.

Lars Von Trier escreveu o roteiro desse filme no auge de uma crise de depressão, ele disse:

“Não conseguia trabalhar. Seis meses depois, apenas como um exercício, escrevi um roteiro. Foi um tipo de terapia, mas também uma procura, um teste para ver se eu ainda faria algum filme”.  E ainda:  “O roteiro foi finalizado e filmado sem muito entusiasmo, feito como se eu estivesse utilizando apenas metade da minha capacidade física e intelectual”, contou ele. “O trabalho no roteiro não seguiu o meu modus operandi habitual. Cenas foram acrescentadas sem razão. Imagens foram compostas sem lógica ou função dramática. No geral, elas vieram de sonhos que eu tinha no período, ou sonhos que eu tive anteriormente.”

Exibido pela primeira vez no festival de Cannes desse ano, “Anticristo” chocou  parte da imprensa e aos críticos de cinema, que saíram antes da sessão acabar, ou vaiaram o filme ao final da exibição.

O filme tem uma belíssima fotografia, e começa em preto e branco, ao som da ária de Handel “Láscia La Spina”, música que também acompanha o desfecho final.

Para o filme ficar compreensível, é necessário uma leitura simbólica e mítica. E aqui coloco minha interpretação pessoal, compreendendo que o filme é riquíssimo em simbologia, cabendo portanto, diversas outras interpretações. Contém spoilers, por isso quem ainda não assitiu, melhor ver primeiro, antes de continuar a leitura.

“Anticristo” conta o drama de um casal, abalado pela trágica morte do filho pequeno,  enquanto eles completamente envolvidos, fazem amor  no quarto.

Os atores Willen Dafoe e Charlotte Gainsbourg interpretam de corpo e alma os protagonistas únicos dessa história. Ela uma historiadora, que está escrevendo uma tese sobre o femicídio (violência, mutilações e morte de mulheres em razão de seu sexo feminino), ele um terapeuta. Incapaz de superar o casalluto, ela afunda em forte depressão,  enquanto  ele como terapeuta resolve assumir a responsabilidade pela terapia que vai ajudá-la a superar essa crise que foi desencadeada pelo forte trauma da perda do único filho.

Desde o início há uma linha divisória bem clara entre o feminino e o masculino, ela entra de cabeça e se entrega a vivenciar a dor do luto, da culpa, se entrega a sua natureza feminina. Ele, racional, apesar da dor interna, conduz sua situação de modo mais distante e frio, se refugia em sua racionalidade para tentar lidar com o problema de sua mulher.

No começo da terapia, ele a leva a encontrar  seus maiores medos, e diante da descoberta, enfrentá-los e confrontá-los como forma de perceber seu caráter ilusório.

O casal embarca então para uma cabana no meio de uma floresta chamada Éden, casa de campo que pertence ao casal. Na floresta, ele vai entrando em contato com elementos estranhos, com o mistério da vida, apesar de sua racionalidade. Vê um cervo dando a luz, mas o filhote não nasceu completamente e está preso a mãe, morto, putrefato. E isso induz tanto ao processo alquímico da nigredo, bem como a necessidade que o pontefilho precisa se desligar da mãe pra viver e tornar-se um homem, além de que o próprio cervo simboliza a auto-renovação, representa um fator inconsciente que nos revela o caminho que nos levará ao rejuvenescimento. Em Éden se cruza uma ponte, símbolo da travessia de um limite, de uma fronteira. Floresta tem sempre o significado do inconsciente, onde vive os animais e os instintos, então percebemos esse adentrar ao inconsciente.

A floresta é algo revelador para ambos, pois em cada fato ocorrido nela, se revela o interior do ser, revela aquilo que há dentro deles e que eles não viam, ou não queriam ver, porque só há dor dentro deles. E de cara a natureza se mostra para ambos como um espelho refletindo o interior como algo violento, chocante,  ctônico. O diretor mostra a natureza nua e crua na visão do homem.  É em Éden que Von Trier coloca todos os demônios e medos inconscientes. Realidade, imaginação, sonho e pesadelo se misturam de tal forma, que se perdem um no outro.

Ele ainda não percebeu, mas ao adentrar a floresta entra em contato com seu aspecto feminino, que para ele é totalmente desconhecido, assustador, sombrio, demoníaco. O feminino, a natureza é o próprio mal enquanto inconsciente.

Interessante no filme, é que ela havia estado o verão anterior sozinha com o filho pra escrever sua tese, e coisas estranhas aconteceram com ela, mudando  sua visão do mundo, já naquele momento despertando suas energias sombrias e seu maior medo. A natureza, diz ela, é a igreja de Satã.

O tempo todo eles estão lidando com suas sombras. Desde o início já havia os três mendigos (símbolo da sombra) em forma das estátuas, até o final, onde ela fala que tudo terminará com a vinda dos três mendigos e que um deles terá que morrer. Assim como, desde o início há os três animais, em forma infantil no livrinho do filho.

Do ponto de vista psicológico, o filme descreve o processo de busca dele, o processo de transição do mundo idealizado infantil para o mundo real, sem medos e conceitos que distorcem a visão. “Anticristo” mostra o autoconhecimento do masculino através do feminino. Ela a mulher, mãe, esposa, amante, representa o aspecto feminino do homem, sua anima que atua como psicopompo, conduzindo ele através de uma viagem em seu inconsciente, ao mundo feminino dentro de sua natureza masculina. Ele em sua racionalidade pensa que está no controle, que têm o controle de sua vida, de sua natureza.

O filho e o marido são a mesma pessoa, e quando a criança morre, significa que aquela visão infantil, pura e inocente de mundo se foi, e então a necessidade de se tornar quem ele realmente é.

O filme é carregado de simbologia do processo de individuação ou iniciático. A casa representa seu espaço psíquico pessoal, a floresta o coletivo. cabanaHá uma enorme árvore no meio da floresta, símbolo arquetípico do axi-mundi, a árvore do mundo, pilar genético de toda a criação, plantada no centro do Éden biblíco, e não é por acaso que  essa floresta se chama Éden.

Sobre a casa onde eles ficam, há um imenso carvalho derramando suas sementes continuamente sobre o telhado, para que a cada cem anos uma semente semeie. Carvalho, árvore sagrada que também representa a Zeus/Júpiter e a Deusa Vesta, símbolo do sol em sua polaridade feminina.

Ali naquele mundo inconsciente representado pela natureza, tem aquela conotação urobórica, como quando ele observa a raposa comendo a si-mesma, alimentando-se de suas entranhas, esta olha para ele e diz: “O caos reina”. Simbolizando que ali o racional não tem domínio, não pode nada controlar.

Há muito sexo no filme, sempre partindo dela de forma agressiva, instintiva, como fome de vida, fome de suprir ou aliviar através do gozo toda a sua agonia, sua dor, sua miséria interior. Para ela como se dor e prazer se misturassem de tal maneira que se tornam uma coisa só, ela não distingue uma da outra. Ela precisa elavivenciar totalmente aquela dor. Dor que já havia se mostrado a ela no verão anterior com o choro da natureza que não nasceu, de todas as sementes que morreram, da vida que não vingou, do filho que se foi. Ela tem muita dificuldade em aceitar  o afastamento dos homens de sua vida, por isso coloca os sapatos invertidos nos pés da criança, por isso prende o peso na perna do marido. Ela incorpora totalmente o arquétipo de pólo negativo da Grande Mãe. Vivencia o arquétipo da mãe destrutiva, da bruxa, e a bruxa é a Deusa-Mãe negligenciada. A Deusa-mãe em seu aspecto destrutivo  era o poder de destruição e morte da Deusa da lua, a face materna negativa e sombria.

rostoÉ esse aspecto negativo do feminino que se apresenta a ele, a mãe má, que sugere: “tudo que é secreto, oculto, obscuro; o abismo, o mundo dos mortos, tudo que devora, seduz e envenena, que é aterrador e inevitável como destino”. E é justo esse aspecto que ele vai ter que enfrentar para superar seu próprio conflito, vai ter que entrar de cabeça no fundo da terra, no útero da mãe, se deixar morrer, enterrar-se em seu medo, seu horror e resquícios do complexo materno/infantil, pra então nascer novamente.

O desfecho final do filme é interessante. De volta a cabana, ambos totalmente sem forças, entregues a própria dor, a própria sorte, ele têm um lâmpejo de luz, clareza, e percebe que a constelação do mendigo não existe de fato, nesse momento como se ele conseguisse distinguir que todo o horror existia somente dentro de sua mente. O animal então, lhe revela a chave que o soltará do peso em sua perna; sim, porque é a sombra quem possui as chaves da liberdade. Solto, ele mata a mulher e a queima, representando que todo o seu horror e medo da vida tal qual é, foi transcendido, superado.

Partindo do Éden, novamente ao som da ária de Handel, agora renascido, subtamente a natureza lhe é provedora, nutriz. Os três animais como que sorriem,  as mulheres sem rostos representando o coletivo e impessoal, já não há mais projeções de espécie alguma, não há mais opostos, nem conflitos.

A paz reina.

18 Respostas to ““Anticristo” (em nosso tempo) de Lars Von Trier”

  1. Lúcio Manfredi said

    Oi, Adi!

    Não vi o filme, não sabia se ia querer ver. As reações que eu ouvi ou li foram tão desencontradas que acabaram me deixando com um pé atrás. Mas, depois de ler a tua (excelente) interpretação, fiquei com muita vontade de assistir.

    Bjs.
    L.

  2. adi said

    Oi, Lúcio!

    “As reações que eu ouvi ou li foram tão desencontradas que acabaram me deixando com um pé atrás.”

    O filme ao primeiro momento nos parece muito estranho, porque a mensagem não fica clara para o racional, e talvez por isso mesmo, o filme não sai da cabeça. Eu li as criticas depois, e saber que o diretor estava passando por depressão quando fez o filme, ficou mais fácil ver a simbologia arquetípica do mesmo.
    Talvez o filme foi tão criticado, porque expôs alguns tabus da nossa sociedade… é aquela coisa, todo mundo sabe que existe, mas ninguém quer admitir ou tocar no assunto (rsrsrs).

    Assisti 3 vezes (rsrsrs), achei/acho válido, nem que for pelo efeito de estranheza.

    “Mas, depois de ler a tua (excelente) interpretação, fiquei com muita vontade de assistir.”

    Etcha!!! muito obrigado pelo (excelente), fiquei muito feliz 😀

    bjs
    adi

  3. Cris Bezerra said

    a primeira palavra que me veio a cabeça qdo o filme acabou foi ¨perturbador¨. realmente é um daqueles filmes que ficam na memória p vida toda. e não dá p parar de pensar…

  4. adi said

    Oi Cris,

    eu também tive essa sensação: “perturbador”… e talvez por isso mesmo, não sai da nossa mente…

    Até mais.

  5. Sem said

    Gostei do filme, Adi. Assisti final de semana…
    Tenho muita coisa a dizer e espero que vc esteja com paciência de ler… rs

    E se alguém mais quiser ler o meu comentário, mas ainda não assistiu ao filme, faço a mesma recomendação da Adi, assista primeiro ao filme, pois aqui vou falar de cenas que revelam parte da trama, ou mais, vou falar do enredo do filme e dar a minha interpretação muito particular sobre ele, que provavelmente será bem diferente do que qualquer outra pessoa possa ter…
    Aliás, a minha interpretação desse filme é bem diferente de todas as que eu já vi até agora. Até da sua, Adi, – como verá, diferimos no final.

    Bom, começando do começo então… esse é o tipo de filme que mais gosto, drama (ou seria trama) psicológico dos bons e com doses bem grandes de originalidade.

    Acho que tem algumas coisas nesse filme que o fazem ímpar e pioneiro em muitos sentidos. O primeiro deles é o sexo explícito, não usual em filmes sem proposta pornográfica, mas é corajoso e muito bacana que traga o sexo como rotina na vida das pessoas, tanto quanto o beijo e tudo o mais costuma ser realmente. Depois, trata de um tema hiper atual: a depressão…
    – diga-se de passagem, a depressão junto à obesidade, à anorexia e bulimia, são estados por assim dizer endêmicos da psique do homem “globalizado” desse início de séc. 21 –
    Mas o filme foge do senso comum ao tratar a depressão com o mínimo de maquiagens possíveis e, melhor ainda, sem os moralismos do tipo “vc precisa ser feliz”, que invariavelmente desembocam num “tem obrigação de ser feliz”, só para incitar um “seja Produtivo”.
    No filme a depressão é uma condição da existência humana, algo normal de se acontecer a qualquer pessoa e não apresenta nenhuma solução de saída mirabolante ou miraculosa, ao contrário, o filme mostra apenas algumas das facetas do problema sem nem mesmo se preocupar em esgotar com o assunto…

    Têm muita arte nesse filme, algumas misturas belas e inusitadas, clássicos em meio a vanguardas, e nesse sentido o filme tem uma estética bem contemporânea.

    Mas a tônica principal do filme, a meu ver, continua sendo essa crueza e simplicidade com que o diretor trabalha os meandros da depressão psicológica: possíveis motivos, crises agudas, arrefecimentos, algumas esperanças e outros possíveis desfechos… Creio que é isso o que passa na atuação dos atores e faz com que tenham uma interpretação o menos afetada possível. E é magistral, pois ao conter a atuação, o próprio drama da situação em si é o que nos é ressaltado.
    Assim, eu penso, não há ser humano nessa terra, homem ou mulher, gay ou lésbica, seja qual for a orientação de gênero que se tenha, que não venha um dia a se identificar com o masculino nesse filme; e não há ser humano, mulher ou homem, etc., que não venha a fazer o mesmo com a mulher… Eu me identifiquei com a mulher em muitos aspectos, e entendi o homem em muitos outros…

    O filme tem imagens impressionantes, dantescas, apesar de serem só os dois o tempo todo, tudo vive numa só alma povoada de fantasmas: no filho morto onipresente e nos animais e espíritos da natureza que morrem-vivem nas árvores, na terra, na grama, nas sementes, na casa…

    Como em Avatar, a natureza do Anticristo é um personagem. Só que no outro filme a natureza é uma mãe benigna (pelo menos para o povo Na-vi), e aqui ela é madrasta – e digo madrasta com todo o respeito pelas madrastas de hoje, que muitas vezes são até mais mães que as próprias de sangue… Mas estou me referindo ao estereótipo da madrasta dos contos de fadas antigos, daqueles deliciosos clássicos europeus, espelhados em nossa herança comum – mítica – grega. É preciso atentar para a misoginia típica desses contos que identificam a mulher com a natureza e faz delas portadoras de certas malevolências e sombridades… Quer dizer, na cultura ocidental, foi sempre a mulher a carregar [junguianamente] a sombra do homem… Toda a repulsa e desvalorização do feminino como inferior, é dado histórico inegável, igualmente o fascínio e a atração pelo misterioso e reprimido… Quando me refiro à misoginia grega, estou trazendo o reporte, principalmente, da poética de Hesíodo e do que ela representa, uma interpretação mais pungente da mulher mancomunada à natureza, transformadas em vilãs, como para causar todas as desgraças possíveis ao homem.
    Ressonâncias com o enredo de Anticristo? mas não poderia deixar de ser, qualquer estado depressivo, necessariamente, passa em algum ponto por essa construção cultural de “natureza feminina”…

    O tema é fascinante, mas o modo como o filme o aborda, acho pouquíssimo provável que as platéias do mundo em peso vão assistir e gostar desse filme… Quem hoje está disposto a encarar a própria sombra? Sem contar que o filme vai além da sombra, a algo mais profundo e que o Jung disse ser o mais difícil de “incorporar”: a ‘anima’.

    Um pouco por todas essas razões é que eu não achei Anticristo um filme de terror – para ser de terror teria de ser [simbolicamente] desestruturante para o ego. Pelo menos a mim esse gênero se faz da possibilidade de um mergulho em alguma espécie de psicose…

    Algumas depressões patológicas correm mesmo o risco de desencadear surtos psicóticos, de fato o maior risco da depressão é que pode levar ao suicídio, mas me parece que o caso de Anticristo está mais para uma depressão “existencial” e querendo significar “vida” (mesmo com mortes simbólicas no meio) do que desembocar nesse desfecho para a “não-vida”…

    Mas concordo que para muita gente, que tema ou fuja dos seus “demônios”, ou que ainda não tenha tido oportunidade e nem o motivo para os enfrentar, o filme possa ser desestruturante… Portanto, pode ser que o filme represente terror para a maioria das pessoas.

    Precisamente o que eu chamo de “depressão existencial” é a tristeza comum a qualquer sensibilidade reflexiva perante a precária condição humana, mas, então…

    Qual é o tipo de depressão do filme?

    Não é a da mãe que perdeu um filho, pra mim, o filho e a mulher são simbólicos da psique do homem… Ele é a chave, o grande protagonista, e vemos isso no final, quando ela é mutilada e morta e ele é o grande sobrevivente da história…

    A psique do filme é orientadamente masculina: é o feminino que está deprimido na psique masculina. Mas não é para menos…

    No entanto o filme não é misógino, apenas acaba inevitavelmente tendo de lidar com essas questões pq nós afinal vivemos numa sociedade com essa herança…

    Volta essa questão pois ela é pungente e incrivelmente muito pouco discutida e pouco compreendida entre os sexos, sejam por orientações héteros ou homos. Ainda agravada porque vivemos numa época dos ‘et ceteras’, com redefinição dos papéis de gênero, tendendo para a indiferenciação…

    Mas vamos valorizar o tempo que vivemos, acho as mudanças que sofremos em geral bastante positivas. A maior tolerância, sem dúvida, é o principal ganho. No entanto, não nos enganemos, são conquistas ainda insubstanciais e celebradas por minorias. Podem evanescer de repente se verificarmos o quanto no coletivo existe muito pouca tolerância entre as pessoas.

    Mas saber exatamente o que é o “masculino” e o que é o “feminino”, hoje, tem a importância no mínimo para se fazer o casamento [‘coniunctio’] simbólico da nossa personalidade: quem vai afinal casar com quem e celebrar as bodas alquímicas de nossa psique?

    O triste nesse filme é essa impossibilidade de uma ‘coniunction’ equilibrada, o feminino tá muito deprimido e desvalorizado e não se permite… Mas tb, quem tem possibilidade hoje de equilíbrio perfeito entre masculino e feminino?

    O nome do filme é muito apropriado, pois se Cristo é o que integra, o Anticristo é o que desagrega…
    E o nome revela o desfecho do filme, a “não-coniunctio”…
    Fazendo uma brincadeira (de humor negro) com o messias que prevíamos para breve lá no tópico Avatar, quem sabe o “nosso” messias seja o Anticristo… Apocalipse então, mas essa previsão tem a idade da história da humanidade.

    Bom, esclarecimentos finais do meu argumento:

    A mulher do Anticristo é muito passiva, intelectualmente aceita as explicações e as orientações dos homens da sua vida, primeiro do analista e depois do marido fazendo às vezes de um terapeuta. Aceita sem questionar, seja pq está muito deprimida e tem pouca vontade própria ou então não existe mesmo outro papel reservado para ela que não o da passividade… Bem que ela tenta se rebelar, mas suas rebeliões são mais resmungos do que afirmações. A última conversa racional que o casal tem, enquanto eles ainda poderiam ter alguma tipo de entendimento, ele diz para ela “vc não precisa entender”… e ela faz aquela cara de resignação final, mas é ali que ela sabe que não é mais nada para ele e o destino violento do casal já está selado…

    Ao longo do filme, por trás das “resignações” da mulher é que vêm suas crises: choro, ataques de angústia, auto-acusações ou acusações contra o marido. Tudo traduzido num incontrolável tesão por sexo… Mas é sexo que não é sexo, no filme é “sublimação”, na verdade o que a mulher está desejando é reconhecimento do feminino e comunhão com o masculino… O desejo é então histérico, substanciado em voracidade histérica. Só pode ser, pois é de uma “fome” que jamais será saciada, afinal, sem valorização do feminino não há comunhão sagrada…
    Se não é a misoginia a razão da histeria feminina… Lembra as primeiras pacientes de Freud, aquelas que ele uma vez, em carta a Fliess ou Jung, não lembro, chamou de suas “adoráveis histéricas”, que o ajudaram a inventar a psicanálise…
    A histeria é a doença do útero, de um útero que não se realiza, diria…

    Do lado do homem, logo após ele “entender” por ela o que estava acontecendo, acaba descobrindo que o pior medo da mulher, o que está no topo da pirâmide da mulher, acima da floresta, é ele próprio: “Me”. Quando ele descobre isso, fecha-se tb o inevitável.

    É num crescendo de violência que ela vai dizendo para ele ao longo do filme: “vc sabe de tudo, não é?”; “como vc é arrogante”; “vc vai me deixar?”; “bastardo, vai me abandonar!”… Bastardo? Por que ela diz e repete isso e não outra coisa qualquer? Bastardo quer dizer aquele que foi gerado em matrimônio não sagrado…

    No final das contas a mulher virou a “conga” de um circo de horror dentro da cabeça do homem… brincadeira, né? mas é sempre assim, a ‘anima’ pode ter esse aspecto terrível se e quando desvalorizada…

    As consequências na vida concreta sabemos todos quais são… sabemos? Pois vão desde queimar bruxas em praça pública até o desamor dentro das casas e… das mentes. O desamor dentro das mentes, é o princípio de tudo, num círculo vicioso.

    Acho que eu barbarizei no meu comentário, fui fundo numa análise “freudjunguiana” do filme e extrapolei um simples comentário que talvez devesse ter se restrito mais ao cinéfilo… Mas cinema, nem sempre, é só diversão. ;p
    Por outro lado tb acho que esse filme se presta a isso, e se a Adi o trouxe aqui para nós foi com essa intenção…

    Adi, viu no que eu discordo de sua interpretação final? Análise selvagem, Adi. Eu não acho que houve integração no sentido estrito dessa palavra. Apenas essa lambança cíclica de um “herói” que sobreviveu a mais um embate com a “natureza”.
    Os animais refeitos do final, – o cervo, o lobo e o corvo – são filhotes e, sim, representam a esperança e uma nova vida. Quando ele os vê esboça um sorriso e sabe que está tudo bem, que a vida afinal continua… É quando sobem centenas de mulheres sem rosto em sua direção… Imagino que estão sem rosto até que ele escolha uma e lhe dê um rosto… Será ela a sua próxima “vítima”, pois ele necessita de uma mulher que carregue o seu feminino, a “mó” que ele não consegue carregar – aquela pedra aparafusada na perna representa o peso de sua ‘anima’…
    A tristeza que eu vejo é que não será exatamente um encontro com outro ser humano, mas uma continuação cíclica desse seu intercurso indefinido com o feminino desvalorizado.

    A questão é se existem encontros possíveis fora das projeções?

    É muito triste, não é? Esse filme me lembra demais o “Labirinto do Fauno”, do Guillermo del Toro, que dou uma interpretação meio diferente da junguiana convencional igualmente… Acho não-vida do feminino os dois… Em Labirinto a mulher sequer pode nascer, a não ser para a morte, e aqui (em Anticristo) a mulher não pode viver dentro do homem… Com “viver” estou querendo dizer ser valorizada.

  6. adi said

    Oi Sem,

    O filme é bom, não é? Mas é para poucos mesmo, talvez porque mostre com crueza as nossas torturas interiores, como o retrato de uma parte dos complexos da psiquê masculina. Olha, gostei bastante e achei bacana sua interpretação, e talvez haja discordância mesmo em alguns pontos.

    Porque de fato, eu entendo e vejo tão claramente que ali o homem está lidando com o seu complexo materno/infantil, e esse complexo está tão reprimido em sua psiquê, que retorna como o arquétipo da mãe devoradora, ou madrasta como vc citou; ou seja, a mulher pra ele, é aquela que prende, que não deixa ele viver, e é com isto que ele têm que romper, têm que matar dentro dele pra ser livre dessa visão, e aí então ter um relacionamento de igual pra com uma mulher.

    Ainda ontem, estava lendo Von Franz – O Caminho dos Sonhos, e tem uma parte que fala direitinho disso. Olha só, na mitologia, há vários tipos de herói, há o amante, mas há também o caçador de dragões. O dragão tem essa simbologia da mãe terrível que precisa ser sacrificada pelo herói, para que este se livre de suas garras, porque o dragão representa aquela imagem materna negativa que exprime a resistência contra o incesto e o medo dele. Esse é o complexo materno infantil negativo, pois na infância, a ânima infantil se identifica com a mãe. E a violência do confronto é proporcional ao domínio tirânico da mãe, um domínio que suga a energia do filho.
    Já percebemos isso no início do filme, quando da morte da criança, representando que aquela imagem infantil tem que ser transposta… então eles vão pra Éden, entram fundo em seu inconsciente, pra matar de vez essa imagem negativa com relação a mulher.

    “Quando o complexo materno é superado, o homem está livre pra desenvolver o lado feminino de sua personalidade, ou seja, desenvolver sua “anima”, esta que o conecta às camadas mais profundas do seu ser. Mas como sua feminilidade inicialmente é identificada com a mãe, é essencial para o crescimento psíquico que essa identificação seja rompida e que a anima seja separada da mãe. Quando tal separação ocorre, o filho é capaz de estabelecer um relacionamento maduro com uma mulher, no qual ela não seja nem idealizada, nem degradada” Von Franz, – ou seja, sem projeções.

    E foi isso que eu quis dizer no final da resenha, ele está livre, sem projeções; ele transcendeu o seu complexo materno, o seu conflito terrível interior.

    Não houve mesmo uma conjunctio, nem integração. Nem poderia, sem ser superado esse complexo, pois caso houvesse, seria como Édipo, aquele que comete o incesto, pois sua anima ainda está identificada com a mãe; então daí surge toda a negação, e degradação da mulher, a fim de se evitar esse acometimento.

    Mas agora livre, ele se tornará o amante, e agora sim, é possível a conjunctio com seu aspecto feminino, com sua ânima livre do domínio materno.

    E o interessante, é que no caso da mãe má, da mãe como dragão, não há outra alternativa; o dragão tem que ser morto mesmo.

  7. Sem said

    Oi Adi, voltei aqui pra te responder.

    Um tanto movida por esse texto que é sincrônico com a nossa (a minha, totalmente) maneira de interpretar os dois filmes: Avatar e Anticristo:

    http://cosmoseconsciencia.blogspot.com/2010/01/era-do-conjugalismo.html

    O que pra mim o Nelson Job diz com “Era do Conjugalismo” é a realização de Eros e Psiqué daquele meu primeiro post aqui no Anoitan, e tende igualmente para o cultivo de Dionísio…

    Só uma sutileza, atente para os “ismos”… todos os movimentos vêm com “ismos” no final, em vez dos, agora de praxe, “dade”… virou mania nas academias substituir um termo pelo outro.
    É o “politicamente correto” a se fazer, mas, às vezes – muitas vezes, isso é feito de maneira incorreta e tende a prejudicar o entendimento do que está por trás dos movimentos sociais.
    No texto do Nelson até “homossexualismo” vem intencional e subversivamente entre aspas.
    Bom, eu reparei nisso, pq eu acho que essa mania de substituir o sufixo, – “modernismo” por “modernidade”, por exemplo -, e “acreditar” que só por isso vamos isentar nosso discurso do pré-conceito ou nos livrar das ideologias que sustentam os sistemas… é, no mínimo, ingenuidade, ou pior, discurso vazio, pra não dizer de má-fé (mascarado).
    Em termos de esclarecimento, o sufixo “ismo” denuncia que tudo são movimentos sociais sustentados por intenções subjacentes àquele discurso: em suma, são ideológicos.

    O texto é inteligente e sensível, acho vale ler e reler.

    Bom, agora eu queria te agradecer, Adi, por discordarmos e ainda assim nutrirmos esse sentimento amigável entre nós. Na verdade, como o ar, isso nem seria motivo de agradecimento, mas, como ao ar, é bom reconhecer as coisas importantes e tratar bem daquilo que faz ou das quais a nossa vida depende. E faz um bem danado ao meu coração saber que vivo num mundo com pessoas como vc, que pensam diferente de mim, mas não fazem disso motivo para segregações. Pelo contrário, as nossas diferenças têm enriquecido o nosso convívio por aqui – e sabe que não estou falando apenas da troca de teorias mas da prática da alteridade mesmo. Olha que ser reconhecido em via de mão dupla é pra mim motivo de alívio, alegria, celebração. E eu acho que muita gente deve pensar como eu a seu respeito.

    Bom, agora que eu já joguei os confetes, vamos às adagas. =)))

    Nem discordamos tanto, não é? mas é numa questão crucial, penso tem a ver com modos diversos de encarar o arquétipo da “Grande Mãe” na teoria junguiana. Penso que é isso, vamos ver, vou então colocar do modo mais sincero como analiso essa questão complexa e aí veremos se é isso mesmo, e como podemos nos esclarecer um pouco mais nisso tudo tb.

    Antes só queria fazer um pequeno comentário, já tive problemas numa comunidade junguiana com alguns radicais do entendimento do pensamento junguiano – eu que sou avessa a esse tipo de briga e prefiro me afastar a me desgastar inutilmente pelo que considero “muito barulho por nada”. (Aliás obra do Shakespeare “Much Ado About Nothinge” que o Kenneth Branagh fez uma comédia maravilhosa) Mas o fato é que esses radicais têm problemas com qualquer um, pois fazem da “Grande Mãe” uma espécie de wicca junguiana ou qq outra espécie de credo ou missão a ser cumprida. Com essa linha acho complicado de argumentar, pois todo aquele que não diga “amém” é excomungado…
    Ao contrário, eu penso que há uma troca muito boa a ser feita entre as mais diversas correntes da psicologia, e interpretações as mais variadas enriquecem o quadro humano, embora cada um continue ainda com a sua linha de argumentação principal, a sua espinha dorsal, digamos… Respeitar isso, na prática, é o que eu considero ser Um na diferença. Mas não é uma coisa muito fácil de se fazer não, até porque requer no mínimo dois ‘agentes’ respeitadores da individualidade de ambos…

    É isso, psicologia é pra mim ciência humana – não é religião, nem ciência exata – mas justo por ser humana pode se valer da religião e da ciência exata, mas é se valer, não ser…

    Diria que a minha linha de argumentação principal hoje na psicologia é pós-junguiana, mas trago muito da psicanálise que me fez a cabeça por tantos anos – Jung, durante esses anos, representou uma espécie de apêndice de Freud e só de uns 5 anos para cá é que ele assumiu as proporções devidas ao ponto de eu finalmente conseguir desvincular a Psicologia Analítica da Psicanálise (curioso que quem me ajudou a fazer isso foi o junguiano mais respeitador de Freud que eu conheço: o Hillman); depois, inclua-se tudo, até o melhor do comportamentalismo americano que acho é expresso nos jogos da análise transacional do Eric Berne, que vai desembocar no melhor da já bem velhinha bioenergética americana, com Alexander Lowen, por exemplo; incluam-se tb os humanismos, dos orientalismos de Eric Fromm aos ocidentalismos adlerianos do Rollo May; inclua-se o transcendental de Pierre Weil; fora os ‘trans’, os ‘inter’, quer dizer, da física quântica à astrologia, tudo e todos são ingredientes para o grande caldeirão da psique…
    Sei que não é fácil, mas não é fácil definir a psique…

    Vamos lá então, o que eu penso da Grande Mãe:
    Conheço muito da Grande Mãe, a começar que tive uma. Mas quem nunca teve a experiência de “ter” uma na sua vida? Com o seu mais benigno aspecto nutridor até o mais sufocante, Grandes Mães estão por aí… isso quer dizer que existem muitos filhos por aí tb…
    Acho que vou me denunciar agora, mas, pra mim, Grandes Mães são mais sufocantes do que aconchegantes. Pelo menos eu tendo a ver esse aspecto negativo com bastante clareza e as brigas com minha mãe eram muitas por isso. Por outro lado, foi uma relação de muitos outros bons afetos, minha mãe foi uma boa filósofa da vida e extremamente divertida e inteligente.
    Como eu disse, Grandes Mães têm muitas, estão em geral criticando alguém ou brigando por seu espaço, são ciosas dele. Só não entendo como uma mulher pode se satisfazer apenas com esse aspecto… mas vejo muitas mulheres estacionadas nisso.
    Eu acho que tenho faro para detectar o comportamento de Grandes Mães pq, se eu escorregar, posso me transformar numa. Imagina, além do exemplo que tive em casa, tenho Ceres conjunto ao Sol e Juno conjunto a Vênus, tudo em virgem, que perigo… Mas para minha sorte existem outros aspectos que me dão a certeza que o meu caminho não é esse e nem eu quero ir por aí…
    Mas o meu lado pacífico faz com que eu em geral me dê muito bem com toda espécie de Grande Mãe possível. Em princípio sou bem acolhida, o problema é que na continuidade não há intimidade possível, pois, naturalmente, a incompatibilidade dos objetivos na vida nos separam como o óleo da água…

    Para explicar essa incompatibilidade de objetivos vou me valer de uma sincronicidade que me aconteceu essa semana. Na quarta-feira à noite estava pensando justamente essas questões, qd me lembrei daquele programa do GNT, o Saia Justa, que eu costumava assistir e fazia algum tempo que não via… Ligo a TV justo no momento em que a Márcia Tiburi apresentava um livro do Gustavo Barcellos falando a respeito do arquétipo do irmão… e eu que estava pensando justamente na função fraternal…
    (Não é o livro apresentado no programa, que é mais recente, mas para quem quiser saber do que se trata, é só digitar no Google ou qq outro buscador, as palavras “função fraternal gustavo barcelllos” e vai aparecer o link para o site da Rubedo com um texto excelente do Gustavo e que aborda de modo abrangente esse assunto.)

    É por isso, arquétipos constituidores diferentes que fazem a distinção das posturas ao longo da vida serem outras… Nas relações arquetípicas verticais, como as de parentesco entre os pais e filhos, estabelecem-se relações hierárquicas de poder e não de fraternidade. Como defende o Barcellos, e como eu igualmente defendo: as relações horizontais são fraternas…

    E é como o Nelson Job disse em seu texto, nós estamos acostumados por esses 8.000 anos de civilização a oscilar entre o matriarcalismo e o patriarcalismo, mas no nosso momento de virada para uma nova era não se trata mais de inverter os comandos parentais e sim de ousar o que ainda não foi feito: relações mais horizontais, abandonando de vez as verticalidades das relações do poder… Então não se trata mais de fazer substituições e sim de trazer para a cena algo que em grande escala ainda é inédito…

    É claro, outras soluções, outros problemas, mas que tal fraternalismo agora?

    Vou te confessar uma coisa, Adi, tenho uma certa dificuldade com o discurso da von Franz, pra não dizer incompatibilidade…
    Por tudo o que já disse e pelo que ainda vou dizer, pra mim ela é o arauto da Grande Mãe. Mas, claro, já li coisas fantásticas dela e com muita coisa aprendi e com outras concordei. Mas no final me fica sempre esse ranço, ou esse travo, que me impede de concordar de todo com as suas palavras. Óleo e água.

    A questão não é se ela está certa ou errada – ela está sempre certa do seu ponto de vista, só que o seu ponto de vista faz do masculino algo feio do meu ponto de vista, não concordo. O Hillman faz crítica semelhante a von Franz e tb aos junguianos “clássicos”.

    Não para Jung – por isso eu te disse uma vez que Jung e junguianos são duas coisas distintas, mas para a von Franz o masculino aparece a mim do paradigma da Grande Mãe. Por isso o “seu” Puer é doente, e visto como um masculino inadequado, algo que precisa “ser corrigido”, precisa “crescer”, para “ser responsável”, “amadurecer” e, se “adequar”. Crescer o Puer? se adequar a quem? ao discurso da Wendy: “como as verduras”, “faça as tarefas”?
    Claro que na vida as verduras devem ser comidas e as tarefas devem ser feitas, mas na imaginação tornar o masculino dependente de se construir ou se constituir por essas ordens, seja para obedecê-las ou para descumpri-las, é resumir o homem ao filho…

    Eu tenho um filho de 20 anos para quem eu sou mãe e para quem espero nunca ser Grande Mãe. Já falei para ele que o futuro hoje depende mais dos homens do que das mulheres, pois as mulheres já foram até onde podiam ir – estão na prática espremidas entre as conquistas das revoluções feministas e ainda sem abrir mão dos poderes da maternidade… Não acho que é à maternidade ou aos filhos que as mulheres devem abandonar, mas ao poder da maternidade onde ele constituir aquelas verticalidades indevidas.
    Mas vamos ser justas, bravas são as mulheres que fizeram muito, e continuam fazendo, – as mulheres estão no caminho; mas se os homens em grande parte ainda hoje agem como filhos, e se sentem filhos, é porque são tratados como filhos por suas mulheres.
    Não é que a “culpa” é sempre da mulher, ou pior, da “mãe”, mas há um jogo de bate e rebate e está na hora do homem rebater… É preciso o ‘basta’ masculino… Sendo assim, como o homem de hoje teve de se adequar à nova mulher que surgiu diante dos seus olhos, o homem de amanhã fará a mulher do futuro ter de mudar por ele… Só assim para seguir nessa história, é a “revolução masculinista” que está faltando – bacana que esse termo cunhado em contraponto ao “feminismo”, é claro, já usei algumas vezes e ouvi a própria Márcia Tiburi usando uma vez no programa Saia Justa para defender exatamente o que estou defendendo.

    A humanidade que eu sonho, se Gaia aguentar até lá, é que o homem seja livre para se constituir como ele próprio. O homem, a mulher e além gêneros, em relações mais horizontais com seus pares e a consequente horizontalidade para toda a grande natureza interior e exterior ao humano.

    Só para concluir meu pensamento e voltando à von Franz, talvez isso advenha da minha herança psicanalítica, mas eu tb não acredito muito nessa onda da “superação” dos complexos.

    Quer dizer, autoconhecimento existe, mas não a superação do desejo…

    O Sartre tem uma frase muito linda no final do seu livrinho “As palavras” – livrinho só no sentido do número reduzido das páginas… Vou citar de cabeça, mas o sentido é mais ou menos assim: “a gente se cura de uma neurose, mas não se cura da vida”.

    Então, o autoconhecimento faz com que nós nos modifiquemos ao ponto de lidar melhor com o “problema”, mas não muda substancialmente o “problema”.

    O Hillman por outra via semelhante afirma que nós somos as “doenças” que temos…

    De acordo com a psicanálise, não se supera um complexo, convive-se com ele. Mais nisso eu acredito, nossos complexos nos constituem e desenham para nós os contornos do nosso desejo que, afinal , é inconsciente. Psicanálise é isso, parece jogo de detetive, sempre através das pistas é que temos de descobrir o “assassino”. Desenhamos o desejo não para superá-lo ou dele nos tornar escravos ou senhores, mas para conviver com ele como nos for possível. Se a vida sempre nos surpreende é porque o desejo é misterioso sempre, e escorregadio, nunca inteiramente desvendado. O máximo que podemos fazer é aprender a conhecer e conviver com os complexos, estabelecer alguma via de contato e administrar o, a bem dizer, inadministrável…

    Não quero defender o homem do Anticristo, mas se ele for visto para além do seu complexo materno, outras coisas poderão ser vistas nele e na trama toda…

  8. adi said

    Oi Sem,

    ” Um tanto movida por esse texto que é sincrônico com a nossa (a minha, totalmente) maneira de interpretar os dois filmes: Avatar e Anticristo:”

    Eu li esse texto do Nelson Job, simplesmente muito, muito bom.

    “Bom, agora eu queria te agradecer, Adi, por discordarmos e ainda assim nutrirmos esse sentimento amigável entre nós. Na verdade, como o ar, isso nem seria motivo de agradecimento, mas, como ao ar, é bom reconhecer as coisas importantes e tratar bem daquilo que faz ou das quais a nossa vida depende.”

    Nem seria motivo mesmo de agradecimento, porque ninguém precisa concordar com tudo e com todos mesmo, e a diferença é muito saudável. Não é saudável, quando um quer convencer o outro que ele é que está certo a qualquer custo, e normalmente o custo é uma desavença. Porque certezas e opiniões são passageiras, pelo menos as minhas mudam, não são fixas; é claro que tenho valores que fazem parte de mim, e esses são mais duráveis… mas opiniões, definitivamente não faz parte da minha ideologia (rsrsrs). Uma certeza que tenho, é que ninguém é dono da verdade, e que as verdades são muitas, e além disso, também dita de várias maneiras, de acordo com cada cultura, com modelos mentais, ainda assim é uma maneira de descrever “algo”, como naquela fábula do elefante (rsrs). E sabe o que é mais importante pra mim, saber que por trás de uma opinião, há uma pessoa que é muito, muito maior que a opinião, que tem um monte de qualidades que não conheço, que é uma pessoa única, um mundo a parte diferente e que são as diferenças que acrescentam e dilatam meu pequeno mundo… 🙂

    “Acho que vou me denunciar agora, mas, pra mim, Grandes Mães são mais sufocantes do que aconchegantes. Pelo menos eu tendo a ver esse aspecto negativo com bastante clareza e as brigas com minha mãe eram muitas por isso. Por outro lado, foi uma relação de muitos outros bons afetos, minha mãe foi uma boa filósofa da vida e extremamente divertida e inteligente.
    Como eu disse, Grandes Mães têm muitas,…”

    Eu entendo também, que o Arquétipo, tem muitas faces mesmo. Então, por. ex., o da Grande Mãe, pode representar muitas facetas ao mesmo tempo, tanto da mãe má, como da nutridora, porque até mesmo o budismo fala, que nós encarnamos num só dia todas as boas e más divindades, desde deus até o diabo, vai depender de nosso humor (rsrs). Agora, você tem razão quando diz que talvez a V.Franz interprete o Puer como que tem por obrigação amadurecer, ou seja, Dionísio tem que se tornar Apolo, e você falou de uma questão importante, bom nós somos mulheres, e claro nosso relacionamento com a mãe é mais de igual mesmo, é diferente de mãe e filho, pois tenho a impressão que algumas vezes a mãe protege mais ao filho, têm mais domínio sobre o filho, não libera seu poder sobre “ele”. E percebemos isso no confronto com a sogra, pois a sogra têm uma disputa de poder com a nora muito grande, ela custa a liberar, a soltar o filho, a compreender que ele é homem e que já pode se assumir como tal, e que não necessariamente vai deixar de ser filho por causa disso. Então, nesse aspecto, você levantou uma questão muito interessante, e não que a mulher tenha a culpa por isso, mas a mulher como mãe, cria filhos baseado sim numa relação de poder, talvez a princípio pelo poder que não exerce sobre o marido??? ou pelo menos por estar subjugada ao poder do marido sobre ela, e nunca num relacionamento de igualdade…

    ” Não é que a “culpa” é sempre da mulher, ou pior, da “mãe”, mas há um jogo de bate e rebate e está na hora do homem rebater… É preciso o ‘basta’ masculino… Sendo assim, como o homem de hoje teve de se adequar à nova mulher que surgiu diante dos seus olhos, o homem de amanhã fará a mulher do futuro ter de mudar por ele…”

    O mais difícil pra ele o homem, é que a base de seu desenvolvimento enquanto criança, é dado principalmente pelo modelo da mãe, pelo que a mãe representou para ele, e pelas necessidades não supridas, ou supridas demais, etc, etc.

    “Eu tenho um filho de 20 anos para quem eu sou mãe e para quem espero nunca ser Grande Mãe. Já falei para ele que o futuro hoje depende mais dos homens do que das mulheres, pois as mulheres já foram até onde podiam ir – estão na prática espremidas entre as conquistas das revoluções feministas e ainda sem abrir mão dos poderes da maternidade… Não acho que é à maternidade ou aos filhos que as mulheres devem abandonar, mas ao poder da maternidade onde ele constituir aquelas verticalidades indevidas.
    Mas vamos ser justas, bravas são as mulheres que fizeram muito, e continuam fazendo, – as mulheres estão no caminho; mas se os homens em grande parte ainda hoje agem como filhos, e se sentem filhos, é porque são tratados como filhos por suas mulheres.”

    Eu tenho uma filha de 21 anos, e nossa relação hoje é de amigas e companheirismo, de conselhos e menos de criticas e isso dos dois lados, muito embora, reconheço que fui autoritária muitas vezes, e tive muitas falhas, quem não as tem, mas já conversamos bastante sobre isso, e falar sobre é um bom caminho pra apaziguar. Agora, você tocou noutro ponto bem delicado, as mulheres ainda tratam seus homens como filhos, muitas vezes assumem o papel de mãe do marido… agora, isso ocorre pra suprir a necessidade dela ou do homem que foi carente de mãe??? acho que é uma associação onde um supre a necessidade do outro (rsrs).

    ” A humanidade que eu sonho, se Gaia aguentar até lá, é que o homem seja livre para se constituir como ele próprio. O homem, a mulher e além gêneros, em relações mais horizontais com seus pares e a consequente horizontalidade para toda a grande natureza interior e exterior ao humano.”

    Nisso eu concordo plenamente com o texto do Nelson Job, porque o nosso tempo, clama por um novo símbolo. Não se trata mais do retorno de Gaia como matriarcalismo, isso já foi, já teve seu apogeu; também não se trata mais da continuação do patriarcal, do racional, etc… isso também já demonstrou que é insuficiente, mas do equilíbrio desses dois opostos, da igualdade dos generos, onde no equilíbrio não há o que possa conflituar. Nem ao céu nem a terra, mas ao meio termo, ao homem que está no meio desse campo de batalha e que precisa solucionar isso dentro dele.

    “De acordo com a psicanálise, não se supera um complexo, convive-se com ele. Mais nisso eu acredito, nossos complexos nos constituem e desenham para nós os contornos do nosso desejo que, afinal , é inconsciente. Psicanálise é isso, parece jogo de detetive, sempre através das pistas é que temos de descobrir o “assassino”. Desenhamos o desejo não para superá-lo ou dele nos tornar escravos ou senhores, mas para conviver com ele como nos for possível.”

    Sabe Sem, na minha própria “observância” (rsrs), é, o de olhar pra mim mesma, pra minhas dores, eu tenho aprendido tanto. Eu não sei se a gente supera um complexo, ou como diria Jung, assimila, ou melhor ainda incorpora a consciência aquilo que nos é alheio e que pertence a nós mesmos, fato é que quando nos tornamos consciente do complexo, e na medida que trazemos isso de volta pra nós mesmos, aceitando-o, ou melhor, aceitando-nos; o complexo perde sua força, e pode-se dizer, que convivemos então pacificamente com isso? talvez igual a dizer, superamos um complexo, pois no íntimo diz que o complexo já não exerce aquele poder de te tirar fora de si ou de paralisar…

    “Não quero defender o homem do Anticristo, mas se ele for visto para além do seu complexo materno, outras coisas poderão ser vistas nele e na trama toda…”

    É verdade, o filme é sim muito rico em simbologia, e até escrevi no começo da minha resenha, que cabe muitas outras interpretações. É como a própria vida, né Sem, tem tantas fases de superação, inciáticas mesmo, como diriam as tradições espirituais, e tudo como uma lição de “convivência”, como você falou logo acima, conviver melhor consigo mesmo e com todos a nossa volta… isso é uma grande arte, a arte da vida…

  9. adi said

    Sem,

    “Bom, agora eu queria te agradecer, Adi, por discordarmos e ainda assim nutrirmos esse sentimento amigável entre nós. Na verdade, como o ar, isso nem seria motivo de agradecimento, mas, como ao ar, é bom reconhecer as coisas importantes e tratar bem daquilo que faz ou das quais a nossa vida depende.”

    Voltando a esse assunto de novo, então eu também tenho que te agradecer, pois você também tem essas mesmas “qualidades”, vamos chamar assim né (rsrsrs), pois tem que vir de ambas as partes, pra continuar esse sentimento amigável…. sabe, ás vezes, uma parte se ofende tanto, se separa e continua nutrindo esse sentimento de separatividade, de rancor, de mágoa; isso prejudica tanto a quem cultiva esse sentimento, prejudica ao ponto da pessoa não conseguir esquecer do outro, de se incomodar demais com o outro, de querer atingir o outro de qualquer forma… 🙂

    Então, também obrigado.

  10. Sem said

    Adi, assisti esse dias um filme revelador de conexão de anima. Trata de depressão igualmente, mas é integração… Adorei o filme, adorei! Vou deixar o trailer para saber se vc tb viu… se ainda não viu, como vc que gosta de cinema, deixo essa recomendação, e eu gostaria muito de saber sua interpretação desse filme.

    Chama-se Dublê de Anjo (The Fall)… Os dois nomes são bem apropriados. O diretor é indiano, Tarsem Singh, excelente:

  11. adi said

    Liguei na locadora aqui perto de casa e eles não tem o filme, vou verificar em outras. Pelo trailer o filme parece bem interessante, não vou viajar no carnaval, portanto ficar assistindo filmes é uma ótima opção.

    Valeu pela dica.

  12. adi said

    Sem, assisti o filme “The Fall” neste final de semana, gostei muito do filme e realmente o filme é encantador principalmente por causa da gorotinha Alexandria, tem partes emocionantes, de uma sensibilidade, a inocência retratada, o visual lindo de um mundo imaginário. Tem muita coisa que podemos conversar mais a fundo sobre o filme, e como começo, vou falar mais em linhas gerais e sobre os aspectos principais na minha opinião.

    O filme tem todos os elementos simbólicos e arquetípicos da transformação interior masculina, sim, a maioria destes filmes sobre transformação é sobre a perspectiva do masculino. Um filme muito interessante que assisti e fala sobre o processo do feminino, é um filme espanhol “Caótica Ana”, ele retrata bem a incorporação do arquétipo do feminino no feminino.
    Em Dublê de anjo, percebemos que em termos arquetípicos de transformação têm elementos muito parecidos tanto em Anticristo e até mesmo em Avatar – elementos como herói, a deficiência física, depressão, irmãos gêmeos, a anima, luta, mar, deserto, morte, etc.

    Roy vive uma forte depressão em decorrência da traição e separação de sua namorada. Nós percebemos que em ambos os filmes, Anticristo e The Fall, a depressão surge a partir dessa separação, da não aceitação da perda, é desencadeado o processo de transformação interior.
    Todo processo de transformação envolve a “morte simbólica”, que Roy leva pelo sentido literal essa desejo interior. Bom, através de Alexandria, com a intenção de realizar esse desejo, e sem perceber Roy mergulha em seu mundo interior e inconsciente. A criança também tem a simbologia do Self em seu status nascendi, aquela espontaneidade que gera a capacidade de fazer a coisa certa; e foi assim que entendi o papel de Alexandria pra Roy, o Self como um fator externo atuando como psicopompo ao mundo interior de Roy, uma sincronicidade interior e exterior.
    Nessa viagem interior, num mundo imaginário, os fatores inconscientes vão tomando forma, trazendo sentimentos/conflitos reprimidos a superfície da psiquê, pra que estes sejam vivenciados e resolvidos.

    A coniunctiu (união dos opostos)e integração com a anima/animus, é sempre representada pelo hierosgamos, casamento mistico, beijo místico, ou ato sexual interior, no caso, em todo o filme o problema maior de Roy é se resolver com sua anima, resolver o conflito do sentimento de abandono de sua amada, e embora estivesse em muitos momentos de sua imaginação em vias de realizar esse feito, ele não o faz, porque ainda estava muito magoado pela traição. Apesar desse fator de união com sua anima não aparecer no filme, a resolução final indica que ele foi bem sucedido em solucionar seu conflito interior – o de ter sido traído. Entendi, talvez que ele não tenha se integrado totalmente a sua anima, porque diante do altar em vias de colocar as alianças, ele é traído pelo padre; no final do filme, quando ele vence o vilão e ela se declara a ele novamente, este não a quer mais e joga fora o “colar” de coração, colar tem sempre a simbologia de destino, então como se Roy desfizesse os laços com o qual em sua psiquê estivesse destinado. Eu entendi que naquele momento Roy estivesse se desfazendo totalmente de seu passado, de sua perda, de seu amor não mais correspondido, se curando pra começar uma nova etapa de vida. Nesse sentido ele superou totalmente seu conflito interior, sua depressão e vontade de morte literal, porque dentro dele havia morrido muitas vezes, e Alexandria o ajudou a trazê-lo de volta a vida, renovado e curado, pronto pra realizar um novo potencial.

    Pode parecer que eu esteja sendo muito literal quanto a coniunctio, mas é que entendo integração, como algo a ser unido, trazido de volta pra dentro e integrado totalmente a consciência; mas, posso de fato estar sendo literal e inflexível nessa minha visão, por isso, gostaria também de saber como você entende esse processo de coniunctio no filme?

  13. Livio said

    Poxa Adi e Sem,

    Vale a pena transformar esse comentário sobre o “The Fall” em artigo, não é mesmo ?

    Por sinal, essas dicas de filmes merecem até uma categoria à parte, pois enriquecem bastante a experiência de assisti-los.

  14. Sem said

    Livio,

    Essa ideia de abrir um topico para filmes aqui no Anoitan, acho bastante interessante. Penso num tópico para “filmes”, em geral, o que não impede de analisar profundamente algum filme específico. Seria interessante pq os leitores do blog demonstram gostar bastante de cinema – e quem não gosta, não é? mas eu digo isso baseada nas respostas diversificadas de quem participou nos tópicos que a Adi criou sobre esse assunto… Bom mesmo seria ainda que quem tivesse algum filme imperdível – e disposição para deixar uma sinopse sobre, encontrasse ali um lugar… ou seja, sem precisar ser autor do blog para isso.

    Olha, Adi, a ideia amadurecendo…

    Bom, Adi, sua interpretação… só tenho a agradecer. Temos a mesma sintonia emocional em “The Fall”, tb achei a garotinha adorável e tudo o mais… mas, uma coisa que vc disse, no final, me fez pensar…

    Vc disse:
    “Pode parecer que eu esteja sendo muito literal quanto a coniunctio, mas é que entendo integração, como algo a ser unido, trazido de volta pra dentro e integrado totalmente a consciência; mas, posso de fato estar sendo literal e inflexível nessa minha visão, por isso, gostaria também de saber como você entende esse processo de coniunctio no filme?”

    Não acho que vc esteja sendo literal, talvez a sua interpretação só privilegie um pouco mais o ponto de vista de alguém que tende para a “introversão”, ao passo que a minha talvez tenda para a “extroversão”…

    Eu questiono mesmo essas interpretações que alguém se “realiza” apenas em si mesmo. Por isso filmes como “Anticristo” e “O Labirinto do Fauno”, por na realidade serem filmes que não integram exterior com interior, acho desagregadores… Eu penso que qd alguém se “integra”, o resultado é percebido logo no seu entorno, não é bem num “felizes para sempre”, fictício e irrealizável, mas de algum modo existe um diálogo fora-dentro que deixa o mundo em harmonia…. quando há “integração”…..
    Mas agora sou eu que pergunto: estou sendo pouco poeta e literal numa interpretação voltada para “fora”?

    Vc leu o ” Tipos Psicológicos” do Jung? Nesse livro ele aborda exaustivamente essa questão, que às vezes as pessoas estão falando da mesma coisa, mas quando abordam a questão, uns do ponto de vista da introversão e outros da extroversão, parecem estar falando de coisas diferentes, qd na verdade não estão…

    Talvez seja por isso que eu não veja tanta importância num “integrar” só para dentro, para a consciência de um “eu” interior (eu interior é redundância…), para a elaboração do “self”… Eu vejo na individuação mais o processo impermanente do que o resultado final acabado… nesse caso é quase a descrição do avesso do processo mesmo, a individuação me parece às vezes bem mais a “descontrução” de um “eu” do que a elaboração de um “self” final.. o sentido que dou a self é de algo meio consciente-inconsciente de estar no “fluxo”… nesse sentido, “estar no fluxo” é puro self, não é um “chegar”, mas um “estar”…

    Então, nesse ponto, a individuação descrita em Jung difere muito da “iluminação” Budista, apesar de eu achar os dois processos bastante afins. Acontece que enquanto a individuação está para a existência, a iluminação está para a transcendência…. Na individuação o processo está sempre incompleto, pois é limitado pelas próprias circunstâncias da vida, sempre em constante mutação e inserido num contexto concreto, específico; já a iluminação descreve outro processo, ultrapassa os limites de uma única existência, transcende ao tempo de uma vida e tudo mais… A individuação podemos descrever e estudar, fazer do resultado “ciência” – é a própria psicologia; já a iluminação é da ordem do espiritual, da religião, nada tem a ver com ciência…

    Mas Jung é fo…..go, ele fez a sua psicologia um tanto “bagunçada”, um pouco lá e um pouco cá, e é por isso que nós aqui o discutimos e gostamos tanto dele.

    Não falei do filme, mas deu pra perceber pq eu acho integração? O ponto não é fazer com que ele acabe com a “mocinha”, que é só uma representante ocasional de feminino com apelo erótico, importante é que ele “acabe” de bem com a vida. E o final é poético: afeto, trabalho, significado, tempo, beleza, vida, são indistintos…

  15. adi said

    Oi Sem,

    ” Bom, Adi, sua interpretação… só tenho a agradecer.”

    Eu gosto muito desse conversar, dessa troca aqui no Anoitan, não precisa agradecer, pois é sempre um prazer.

    Bom, questões bem interessantes que você levantou aqui.

    “Eu penso que qd alguém se “integra”, o resultado é percebido logo no seu entorno, não é bem num “felizes para sempre”, fictício e irrealizável, mas de algum modo existe um diálogo fora-dentro que deixa o mundo em harmonia…. quando há “integração”…..
    Mas agora sou eu que pergunto: estou sendo pouco poeta e literal numa interpretação voltada para “fora”?”

    Na minha opinião, é bem por aí, independente de qual tipo de integração, de qual área do ser trabalhada, é sempre um relacionar melhor interior/exterior, e se não for assim, i.e., se não abranger essa mudança co-relacionada, não houve a integração.

    “Vc leu o ” Tipos Psicológicos” do Jung? Nesse livro ele aborda exaustivamente essa questão, que às vezes as pessoas estão falando da mesma coisa, mas quando abordam a questão, uns do ponto de vista da introversão e outros da extroversão, parecem estar falando de coisas diferentes, qd na verdade não estão… ”

    Li sim, e concordo, pois enquanto os introspectivos explicam a mesma coisa do ponto de vista interior, o extrovertidos falam igualmente, mas só utilizam uma linguagem diferente. É nesse sentido Sem, que eu acho que as religiões falam do mesmo Deus, de um único mistério, mas somente utilizam linguagens diferentes, pois os modelos mentais são muitos. Até o momento em que se percebe que o mistério é ainda maior e que não pode ser definido, então até mesmo as crenças em conceitos fixos se desfazem, e percebemos que tudo é possível neste vasto mundo. 🙂

    “Talvez seja por isso que eu não veja tanta importância num “integrar” só para dentro, para a consciência de um “eu” interior (eu interior é redundância…), para a elaboração do “self”… Eu vejo na individuação mais o processo impermanente do que o resultado final acabado… nesse caso é quase a descrição do avesso do processo mesmo, a individuação me parece às vezes bem mais a “descontrução” de um “eu” do que a elaboração de um “self” final..”

    Sabe, eu entendo que tanto o integrar pra dentro (introvertido), quanto o integrar pra fora (extrovertido), tratam de um mesmo processo no sentido de que, quando falamos em integração é sempre um relacionar melhor, ou uma compensação, um equilíbrio entre o mundo interior e exterior, ou seja, para o introvertido ele sempre vai liberar os conteúdos reprimidos para lidar ou entender melhor o entorno, o exterior ao qual pertence. Talvez para o extrovertido, ele se utiliza do exterior pra adentrar ao interior e lidar melhor com isso. De qualquer forma, eu entendo que a individuação, na medida que atua na desconstrução de um eu, vai emergindo o Self. Só é possível a elaboração do Self, na desconstrução do eu, em simultâneo, passo a passo, um diminuindo e o outro aumentando. Por isso que a maioria das escolas iniciáticas fala do gerar a “criança divina interior”, por isso Paulo discípulo falou “que a medida do homem perfeito é a medida da estatura completa de Cristo”.

    “Então, nesse ponto, a individuação descrita em Jung difere muito da “iluminação” Budista, apesar de eu achar os dois processos bastante afins. Acontece que enquanto a individuação está para a existência, a iluminação está para a transcendência…. Na individuação o processo está sempre incompleto,…
    … já a iluminação é da ordem do espiritual, da religião, nada tem a ver com ciência… ”

    Elas “parecem” ser diferentes sim, porque o foco durante o caminhar são diferentes, mas o objetivo do resultado final são os mesmos. A iluminação fala da transcendência do “eu”, da transcendência das percepçoes limitadas; não da transcendência da vida. É um processo diário, onde não ocorre uma única iluminação e pronto eis um buda; mas onde no decorrer do processo há vários contatos com o numinoso (arquetípico) através de estados alterados de consciência, e esses contatos são sempre descritos como uma luz na cabeça que se estende pra todo o corpo em sintonia com a sensação e o sentimento mais a mente, mas que se vê com o olho interior, a cada “luz/numinoso” na mente, tanto se percebe o verdadeiro “ser” quanto essa luz ilumina e revolve a escuridão interior, que depois do contato emergem a consciência para serem integrados. Acontece que a primeira instância, o “ego/eu” luta contra esses conteúdos do inconsciente, tipo: O quê? eu não sou assim!!! eu sou aquela “luz” repleta de bondade, amor e sabedoria, volte já pra escuridão (inconsciente) de onde surgiu. 😀
    Está feito o conflito, porque o “eu” nega e o conteúdo fica ali forçando a entrada… até ser integrado. Essa integração, mesmo que seja interior, renova a percepção do mundo, não ainda como de fato é, mas retira muitas das projecões, e assim o entorno/exterior se modifica também. E é assim a cada contato com a luz, até transcender completamente o sentido de “eu”, então, segundo o budismo, a iluminação total ou o estado desperto, é a percepção de que o samsara é o nirvana e o nirvana é o samsara, é o mesmo que o Unus Mundos usado por Jung.

    Jung tomou muito cuidado ao tratar do espiritual, portanto ele não falou que o numinoso era o contato com o divino, mas com a imagem de Deus, seja ela qual for no consciente do indivíduo.

    Voltando ao filme, trata sim de um processo de integração com conteúdos inconscientes dele, e toda integração ao meu ver transforma pra melhor o entorno; mas não se trata de integração plena com a anima, talvez o começo de um ajuste e compesação da anima, pois essa integração com a anima sempre envolve a energia sexual do corpo, ou kundalini. Mesmo Jung no livro sobre a coniunctio, diz que pra integração plena de anima/animus, ou integração/casamento dos opostos, fica implicito o hierosgamos.

    … é, eu acho que nós estamos falando a mesma coisa … 😀

  16. adi said

    Livio e Sem, e demais participantes aqui,

    O que vocês acham de abrirmos um tópico na categoria cinema, com o titulo “Filmes/Resenhas/cinema – Interativo” qualquer coisa assim, este tópico conteria só os explicativos por ex:

    “Este tópico é pra todos aqueles que quiserem deixar alguma resenha ou indicação sobre filmes interessantes… etc, etc…”

    mais ou menos isso; então a pessoa deixa a dica ou resenha, etc, no comentário do tópico/post “cinema/Filme”, e qualquer um de nós administradores do blog, colaríamos esse comentário/resenha como um post pra ser comentado por todos. Assim seria interativo.

    Poderíamos abrir uma outra categoria interativa além de cinema, por ex, mais ou menos dessa forma acima, mas pra outros assuntos diversos relacionados com religião, psicologia, misticismo, etc, onde o interessado pode postar o texto primeiro como comentário, então levaríamos o assunto pra um post mesmo.

    Porque todo comentário aqui no Anoitan vai aparecer ali na janelinha ao lado, seria visto por qualquer um de nós, e o tópico vai estar sempre disponível pra ser comentado, então bastaria colocar o texto no comentário que este seria levado com os devidos créditos para um post novo.

    O que vocês acham?? alguém tem outra idéia pra melhorar ou simplificar?? toda sugestão será bem vinda.

  17. adi said

    Olha eu dinovo consertando pra ficar mais entendível… 😉

    Escrevi: Li sim, e concordo, pois enquanto os introspectivos explicam a mesma coisa do ponto de vista interior, o extrovertidos falam igualmente, mas só utilizam uma linguagem diferente. É nesse sentido Sem, que eu acho que as religiões falam do mesmo Deus, de um único mistério, mas somente utilizam linguagens diferentes, pois os modelos mentais são muitos.

    Acho que você entendeu Sem, mas só pra ficar melhor, não é que eles se utilizam de outra linguagem, os extrovertidos falam através do ponto de vista de fora, do externo… bom, eu não entendo bem desse ponto de vista extrovertido, né? pois sou INTP, então eu acho que é dessa maneira, mas não estou afirmando nada, ok. (rsrsrs)

  18. Sem said

    >>> O que vocês acham de abrirmos um tópico na categoria cinema, com o titulo “Filmes/Resenhas/cinema – Interativo”……….. etc. etc.

    Boa, boa ideia!, podemos começar com cinema, e se houver participação e interesse dos frequentadores, abrir para outros temas que sejam do interesse comum…

    O Anoitan nasceu dessa vontade de um blog conjunto, então, que se realize…

    Para esse tópico cinema posso preparar um mosaico com cenas de filmes….. até imagino como ficaria a imagem… o problema é que o meu tempo anda escasso e nesse mês de março não vou ter folga… Mas se a ideia seguir adiante, de minha parte, prometo essa ilustração.

    E voltando ao “The Fall”, Adi, ou melhor, focando nessa controvérsia a respeito das diferenças entre introvertidos e extrovertidos, estudei a fundo tipologia junguiana durante um bom tempo, mas nunca consegui levar essa separação completamente a sério, embora seja ela uma das bases da psicologia do Jung.

    Categorias, em geral, não levo muito a sério. O meu sentimento sempre me fez ver em Aristóteles e derivados a “praga” da filosofia, porémmm, uma praga necessária. Pois as categorias são feitas para separar, e a separação é necessária ao ponto da diferenciação, da organização, da ordenação, de tudo o que torna a vida mais fácil e até possível, mas desnecessária e nociva mesmo, se for o único parâmetro de se avaliar pessoas e tudo o mais. Categorias, tornadas rígidas e “eternas”, engessam mais a vida do que a servem… Na realidade as coisas se mostram ao longo do tempo impuras, a vida mesmo é um caos. E nós podemos nos imaginar introvertidos ou extrovertidos, representarmos durante um tempo sermos aquilo e nada mais do que aquilo, mas, no fundo no fundo somos apenas poeira de estrelas. Hoje mais do que nunca eu entendo “introversão” e “extroversão” como complementares – pontos de vista que se sustentam então, nos moldes daquelas dualidades taoístas, como vc descreveu “ying” e “yang” no tópico mais recente “Rios de Vida”.

    O que é extroversão e o que é introversão? apenas descrições dos modos possíveis do “olhar” de uma pessoa… Podemos nascer sim com um modo preferível de olhar, por razões que creio são incalculáveis e que vão desde causas congênitas até herança genética, depois, ainda somos educados pela família e sociedade a olhar numa só direção. Nós brasileiros, como povo, somos instados a olhar para fora, preferencialmente, somos educados para esse tipo de olhar do extrovertido. Mas uma pessoa só, comum, sem grandes desvios, na medida que vai amadurecendo e somando experiências na vida, aprende que é possível modos diversos de olhar… Nesse caso será que ainda faz sentido dizer que somos isso ou aquilo… Muito menos nossa essência tem personalidade introvertida ou extrovertida. Categorias são rótulos apenas, não é?

    Tenho uma imagem bastante nítida a esse respeito, é a seguinte: uma casa, uma porta de vidro e a rua. Só isso. A casa é nosso corpo e a rua lá fora é o mundo. Deus queira que a alma possa exercer a função do vidro, que ao mesmo tempo separa e protege um mundo do outro, permite a permeabilidade e o conhecimento entre os mundos… O extrovertido é como uma pessoa de dentro da casa olhando o movimento lá fora, pois tudo o que é do seu interesse está lá, na rua colorida pelo sol, no movimento das pessoas, nos cheiros, ou então nas sombras que a lua faz, o extrovertido só tem olhos para o que vem de fora… O introvertido é o contrário, é aquele que está muito preocupado com o movimento dentro da casa: todos os meandros e cantos escuros e iluminados, a paisagem interna e as pessoas que habitam aquele lugar, como elas são e como se comportam nesse cenário intimista, é só isso o que lhe interessa…
    Individuar não é estar totalmente nem “dentro” nem “fora”, é estar no limiar da porta que separa interior de exterior, é “ser” alma, o vidro da porta, ou ter o pescoço articulado para se voltar em qualquer direção, e ver a beleza e o horror ora num canto, ora no outro… Dentro e fora, é um só o mundo, e… tudo está conectado.

    Nessa imagem qual o sentido de separar os homens em duas categorias: os preferencialmente extrovertidos dos preferencialmente introvertidos? perde a importância, realmente. Mas reconheço que são esquemas que primeiro precisamos conhecer para só depois abandonar – aprender, para depois esquecer – são verdadeiros e realmente distinguem [separam] as pessoas, pelo menos até não serem mais e não separarem mais ninguém e nem nós do mundo…

    O próprio Jung considerava a sua tipologia um parâmetro inicial de investigação, que o processo da individuação no seu avançar faria as pessoas frequentarem vários “tipos”.

    Outra coisa importante, dizer que alguém é (ou seria está?) introvertido, equivale dizer que o inconsciente daquela pessoa é (está) extrovertido… e dizer que alguém é(está) extrovertido é o mesmo que dizer que o inconsciente dele é(está) introvertido. Tanto mais o inconsciente será extrovertido ou introvertido quanto mais introvertida ou extrovertida for a pessoa no seu modo de ser, ou melhor, modo de “estar” no mundo. Faz sentido, se individuar significa romper [sem surtos desestruturantes] fronteiras entre o consciente e o inconsciente, então, à partir de um certo estágio de individuação fica difícil dizer radicalmente ser de um só “tipo”…

    Sem contar que consciente e inconsciente são conceitos, categorias teóricas e, portanto, não os estados naturais da alma ser no mundo…

    A von Franz desenvolve bem essas questões, ao que me lembre no seu trabalho “A Função Inferior”, ela aborda diretamente essas questões todas. Mas ela realmente baseia sua psicologia em “tipos”, coisa que o próprio Jung não fez.

    Pois é, Adi, coloquei esses “senões” todos só para incrementar a discussão dos tipos, que eu sei vc conhece bem do assunto. Eu tenho esse incômodo de falar como se acreditássemos que podemos separar a humanidade em tipos e nos enquadrar de acordo, mas vc sabe que não estou discordando de nada do que disse, apenas dando o meu ponto de vista disso tudo.

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