Anoitan

“Se sempre há um amanhã, sempre há um anoitã.”

O Véu de Aurélio

Posted by Kingmob em outubro 9, 2008

Onde é minha moradia? Onde nem eu nem tu estejamos.

Onde está meu fim último ao qual devo chegar?

Lá onde nenhum fim se encontra. Então para onde me voltar?

Devo tender para além de Deus, para um deserto.

-Angelus Silesius,

“O Peregrino Querubínico”.

Toda a existência da linguagem está baseada em dualidades simbólicas: vida/morte, bem/mal, eu/isso, prazer/dor. Estes pólos opostos são mutuamente referentes, validando-se em um relação de reciprocidade. Muito embora os símbolos mereçam ser celebrados (e não obedecidos), não é proveitoso esquecer que sua finalidade mais importante é apontar para a sua própria superação no que alguns chamaram de união dos opostos.

Os símbolos não são a realidade para que apontam, o mapa certamente não é o território. A linguagem, que é composta de símbolos, é uma espécie de cercado auto-referencial e os jogos e discussões sutis que enseja só fazem sentido dentro do seu próprio conjunto de regras. Entretanto, a realidade, violenta por natureza, tem o poder de passar ao largo destas regras auto-referenciais, inundando o cercado da linguagem com suas sensualidades e circunvoluções muito mais plenas, fluidas e caóticas do que faria supor a mera assimilação automática das palavras.

Há um desvão (outros prefeririam falar em abismo de misericórdia, vazio, silêncio) entre o regramento da linguagem e a realidade. Este limiar é inicialmente imperceptível, pois para cada objeto no mundo parece corresponder uma palavra e vice-versa. Mas é justamente esta pressuposição de que cada objeto é uma palavra que constitui o erro, o fundamento próprio da ilusão. A “teia” linguística assim formada e cada palavra que a integra, interpõe uma espécie de membrana que entope a passagem para uma intuição mais essencial e iminente da realidade.

Levando em consideração que as palavras não são a própria realidade para que apontam, a palavra Deus, por exemplo, tem o condão de hipnotizar a mente e chega mesmo a esconder uma realidade que sim, poderia ser chamada de Deus, mas é uma realidade tão viva, presente e complexa em seus relevos, nuances, territórios, vãos, desvãos, peculiaridades, carnes, veias, artérias, acidentes geográficos, enfim uma realidade tão iminente que seria um atentado colocar em discussão a existência ou não de Deus. A iminência é toda o máximo da expressividade. O mais longe que se pode chegar com este tipo de discussão é à conclusão pela existência ou não de um símbolo, de uma palavra: neste caso a palavra Deus. Cai por terra a discussão se Deus existe porque a própria realidade para que aponta a discussão a repele. A repele justamente porque é a realidade e não o instrumento, ou o cercado de regras que aludem mais ou menos arbitrariamente para a realidade.

Ao se colocar em relevo a realidade para que aponta a discussão se Deus existe ou não, não se quer em absoluto dizer que esta realidade é Deus. Dizer que esta realidade é Deus é dizer que esta realidade é uma palavra, é dizer em outros termos que o dedo que aponta para a lua é a lua. Neste sentido Deus não existe como também não existem quaisquer outras palavras ou conjunto de palavras enquanto realidades fora de seu próprio sistema auto-referencial: morte, vida, amor, medo, “o livro está sobre a mesa”, etc.

Por analogia, todas as demais categorias caem, dissolvem-se, relativizam-se frente a transcendência dos opostos. Tornam-se sem importância as grandes questões como vida depois da morte, bem como o próprio dualismo vida/morte, a questão do bem/mal, o dualismo entre sujeito e objeto, prazer e dor. A melhor resposta para as indagações que se refiram a estas questões é a dissolução natural da própria pergunta, que se dá ante a iminência absoluta do silêncio.

4 Respostas to “O Véu de Aurélio”

  1. Malprg said

    No final das contas, todas essas querelas entre ateus e crentes, entre fundamentalistas à esquerda e a direita do espectro divino, não passam de apego ou rejeição a uma palavra, e ao conjunto de associações e imagens que se cristalizou em torno dessa palavra. Ficam todos tão hipnotizados por ela que não percebem que “Deus” e “a estrutura subjacente do universo” são só duas metáforas alternativas pra se referir à mesma coisa.

    Quanto à união dos opostos, é nessa direção que estão indo as minhas pesquisas sobre a função transformadora da arte (mais especificamente, da literatura): a essência da narrativa é o conflito e a superação do conflito, o que é muito fácil de deslizar para a função transcendente, que unifica os opostos. E, de acordo com tio Carlos Gustavo, a melhor forma de constelar a função transcendente é através da imaginação ativa, que tem MUITOS pontos de contato com a criação artística. Na verdade, eu tô convencido de que é essa a função mais importante da arte, e a missão que ela cumpria antes que a ideologia mimética (que o Platão detonava com razão) confundisse a cabeça dos artistas e fizesse eles acreditarem que a tarefa da arte é copiar o mundo exterior…

    Abs.
    L.

  2. andreisc said

    Autor: Frei Nando

    As palavras, que fazem parte da linguagem, não se confundem com simbolos (sym+baylen = uniãoo de duas partes de uma moeda), logo, simbolo não é a moeda, não é a palavra, o termo, nem o significante (materialidade da palavra mais sua parte acústica), nem tampouco seu significado. O simbolo é a coninctio, como ressaltado, mas do inconsciente com a consciência. Nesse sentido ele é não apenas plurisignificativo, numinoso, como também misterioso. A morte do sí­mbolo é sua plena revelação.

    Cada palavra, pode ser ressaltada a partir de seu protótipo, ou seja, de um modelo-padrão (ex: significado a partir do dicionário), mas, ao sair da virtualidade da linguagem (mosaico linguí­stico) torna-se idiotí­pica, ou seja, singular. É na singularidade dessa palavra que em conjunção com outras (doravante, indissociabilidade) forma um mosaico de isomorfos não-triviais (ou seja, um conjunto não ordinário [não identico a si próprio] de semelhanças [como o pertencimento a linguagem] e diferenças relativamente fechadas e relativamente abertas [passí­veis de mutação]). São palavras agenciadas a um sujeito em seu processo de individuação, que falam de si além de si. Pedra que não é só pedra, pedregulho da existência, lapis philosophorum, pedra profana, pedra no meu caminho, e cada pedra que precede a pedra contém a pedra-toda, ou, como os número de Fibonacci, seguem um proporção em diferença e regularidade.

    Existe nesse estado de coisas uma possibilidade de absurdo e não-linearidade. Então a linguagem, em seu múltiplo engano, em sua rota-de-fuga (aproveitando que ainda temos nossos ifens!) encontra a própria trans-cendência, quer dizer, não o além do fenômeno (phainomenon), mas através do seu aparecimento seu “mais-do-que”…

    Então, todas as perguntas feitas tem seu sentido pela e através da experiência. Se Deus, enquanto noumeno existe, isso não sei, mas que ele pode ser doce, isso sei que pode, assim como Jah, Iavé, Atmã, Jesus, Buda, etc. podem ter uma realidade animica que vai além do dado na hyle (matéria)… logo, as perguntas tem pleno sentido. Existe vida além da morte? É uma pergunta crucial a uma pessoa que está próxima a essa experiência (experiência como antonimo de vivência).. seja experiência pela linguagem, imagem (Jung dizia que a linguagem nada mais é do que imagem!), ato ou qualquer outro protótipo.

    O mapa não é o território, mas o mapa está para além do mapa!

    Autor: Frei Nando

    As palavras, que fazem parte da linguagem, não se confundem com simbolos (sym+baylen = união de duas partes de uma moeda), logo, simbólo não é a moeda, não é a palavra, o termo, nem o significante (materialidade da palavra mais sua parte acústica), nem tampouco seu significado. O simbolo é a coninctio, como ressaltado, mas do inconsciente com a consciência. Nesse sentido ele é não apenas plurisignificativo, numinoso, como também misterioso. A morte do símbolo é sua plena revelação.

    Cada palavra, pode ser ressaltada a partir de seu protótipo, ou seja, de um modelo-padrão (ex: significado a partir do dicionário), mas, ao sair da virtualidade da linguagem (mosaico linguístico) torna-se idiotípica, ou seja, singular. É na singularidade dessa palavra que em conjunção com outras (doravante, indissociabilidade) forma um mosaico de isomorfos não-triviais (ou seja, um conjunto não ordinário [não identico a si próprio] de semelhanças [como o pertencimento a linguagem] e diferenças relativamente fechadas e relativamente abertas [passíveis de mutação]). São palavras agenciadas a um sujeito em seu processo de individuação, que falam de si além de si. Pedra que não é só pedra, pedregulho da existência, lapis philosophorum, pedra profana, pedra no meu caminho, e cada pedra que precede a pedra contém a pedra-toda, ou, como os número de Fibonacci, seguem um pro-porção em diferença e regularidade.

    Existe nesse estado de coisas uma possibilidade de absurdo e não-linearidade. Então a linguagem, em seu múltiplo engano, em sua rota-de-fuga (aproveitando que ainda temos nossos ifens!) encontra a própria trans-cendência, quer dizer, não o além do fenômeno (phainomenon), mas através do seu aparecimento seu “mais-do-que”…

    Então, todas as perguntas feitas tem seu sentido pela e através da experiência. Se Deus, enquanto noumeno existe, isso não sei, mas que ele pode ser doce, isso sei que pode, assim como Jah, Iavé, Atmã, Jesus, Buda, etc. podem ter uma realidade animica que vai além do dado na hyle (matéria)… logo, as perguntas tem pleno sentido. Existe vida além da morte? É uma pergunta crucial a uma pessoa que está próxima a essa experiência (experiência como antonimo de vivência).. seja experiência pela linguagem, imagem (Jung dizia que a linguagem nada mais é do que imagem!), ato ou qualquer outro protótipo.

    O mapa não é o território, mas o mapa está para além do mapa!

  3. victoria said

    Agradeco , Franco Atirador, o fio de Ariadne entregue na reposta que possibilitou meu desembarque em
    Anoitan.Somente agora tendo-os encontrado, nao
    poderia perde-los precocemente, antes de absorver
    o conteudo cuja amostra tanto me prometeu.

  4. f2lucas said

    “No início era o verbo, e o verbo se fez carne”.

    abçs.

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